quarta-feira, setembro 26, 2001

Os ratos...

Um pequeno barco, ancorado num pequeno porto, numa pequena cidade, certa vez recebeu a visita de um grande nobre da região.

A tripulação esmerou-se em deixar o barco bem limpo, com o motor funcionando e mostrou-se muito receptiva à comissão do nobre.

Aquilo o encantou. E ele resolveu que iria comprar aquele barquinho. Ou melhor, ele iria transformar o barquinho num navio.

Com o seu dinheiro e seus conhecimentos, aquela tripulação iria longe, navegando pelos grandes mares, como os grandes navios já faziam. Iriam começar a concorrer com estes, antes vistos de longe e com admiração pelos tripulantes do barquinho, e a qualidade de seus serviços iria levá-los ao topo.

Dito e feito. Comprou o barquinho, aproveitou a tripulação, melhorou os equipamentos e máquinas e montou um navio. De primeira. Convidou os dois capitães do barquinho (que nem sabiam na verdade que eram capitães) a se juntar a ele no comando dessa grande embarcação.

Fizeram algumas viagens, mas sem muita emoção - algumas, aliás, eram de tédio absoluto. Até que um dia o grande nobre vislumbrou um novo roteiro de viagem, que jamais havia sido feito por nenhuma embarcação - nem barquinhos e nem navios...

Prepararam-se, planejaram tudo (o nobre comandante era um expert em planejamento), e começaram uma grande viagem.

Não sem antes aumentar a tripulação, afinal, o navio era muito grande para aqueles poucos. Ao fazer isso, conseguiram contratar marinheiros de qualidade, mas nem todos com a mesma qualidade dos primeiros - tanto que alguns deles se jogaram (ou foram jogados) ao mar na primeira tempestade. Outros, que deveriam ser jogados, aperfeiçoaram-se em servir ao nobre, tornando-se protegidos e livrando-se do "arremesso" precipitado. E não foram poucas as tempestades.

Mas eles não eram mais tripulantes de um barquinho, tinham estrutura e, principalmente, tinham um comando. E a cada tempestade que aparecia, o comandante, como um mágico, tirava de sua cartola uma nova solução.

O casco parecia furado, mas ele tirava a madeira de outro pedaço do navio e consertava o casco. E assim foram, mantiveram seu curso, naquele mar desconhecido.

Mas as madeiras para consertar o casco estavam se acabando. De tempos em tempos eles paravam em portos pelo caminho para tentar trazer para si outros tripulantes, outras mercadorias para transportar, gerando assim mais rendimentos para a companhia e mantendo-se firmes na viagem.

Era uma viagem longa e cansativa. As tempestades, cada vez mais, e maiores. Os tripulantes não tinham mais a mesma força para lutar contra as forças da natureza, e foram fraquejando, fraquejando...

E quando tudo parecia perdido, um motim parecia ser iminente, o capitão, sem descer de sua posição de nobre, anunciou, firme e convencido de si como sempre: -"Não se preocupem, marujos, pois eu tenho uma cartada com a qual nenhum de vocês contava...”.

Ao contrário de outras vezes, a tripulação não recebeu a novidade com empolgação. Mas ele continuou: -"Eu tenho aqui uma galinha que vai nos salvar". - As gargalhadas foram inevitáveis, mas ele esbravejou e exigiu silêncio: - "Tolos... Trata-se de uma galinha de ovos de ouro. Ela irá resolver todos os nossos problemas e nós vamos vencer, completar a viagem e ainda iremos rir muito de todas as tempestades que enfrentamos."

Mais uma vez, alguns se animaram com o anunciado - mas foram poucos. Mais precisamente, aqueles que mereciam ter sido jogados ao mar e não foram. E assim provaram mais uma vez para o nobre que mereciam permanecer a bordo...

A esta altura, os tripulantes do barquinho já não se preocupavam com nada além de manter suas próprias vidas, e para isso agarravam-se bravamente ao amor que tinham pelo mar e pela navegação.

Mas o comandante não temia nada... Mesmo nunca tendo comandado uma embarcação daquelas, mesmo sequer tendo sido marujo um dia, mantinha a certeza de que venceriam. E foi com esta perspectiva que ele, um dos maiores especialistas em planejamento, começou a dar a volta por cima.

Planejou os próximos dias, meses e anos, contando com todo o ouro que a galinha iria lhes proporcionar. Aportaram numa cidade muito rica e ele pegou várias arcas de ouro para continuar sua viagem, garantindo aos que emprestavam que pagaria com o resultado da viagem, e que, se nada mais desse certo, pagaria com os ovos da galinha. Orador eloqüente que era, os donos de capital sucumbiam à sua explanação, e ele angariou quantas arcas teve vontade.

E começou a gastar seus conteúdos: "Uniformes novos para todos; reconstruam meus aposentos com todo o conforto que mereço; contratem novos marujos com experiência e conhecedores deste mar, não importa o preço a pagar..." E assim foram-se esvaziando as arcas, e novas arcas eram emprestadas.

Durante todo o período, alguns dos tripulantes (principalmente os antigos), tentavam alertar o capitão para a importância de se fazer um enterro, mesmo que simbólico, dos marujos jogados ao mar, mas isso não acontecia. A partir do momento que os marujos eram jogados, suas famílias ficavam desamparadas, seus corpos largados aos tubarões... Tudo em prol da viagem, do objetivo final - que um dia foi de todos.

Navio reconstruído, tripulantes bem vestidos, mesmo famintos e sem forças, partiram para o que deveria ser a última parte da viagem - aliás, de um tempo pra cá, todas as partes eram a última, e o local de destino estava cada vez mais próximo. Mas o planejamento às vezes falhava. Aliás, ultimamente, às vezes funcionava, na verdade. Mas voltemos ao mar...

Os comerciantes das cidades portuárias mandavam mensageiros para cobrar as arcas, mas ainda não era chegada a hora da galinha começar a botar seus ovos. Até que a situação ficou insustentável, e a galinha precisava enfim botar ao menos um ovo, para salvar a tripulação - ou pelo menos salvar o nobre, o que era sua real preocupação.

Foi quando começou a maior tempestade...

Muita água, e a tripulação sem forças para reagir. Ondas, chuvas, ataques de pequenos barcos, que queriam de volta seus quinhões e que, isoladamente, nada representavam, mas no conjunto começavam a incomodar.

E a galinha então começou a cantar. Era um bom sinal. Ia colocar o esperado ovo. Momento importante, o nobre foi para seus aposentos com a galinha e, passados alguns minutos, saiu de lá, com algo entre as mãos: "Eu prometi e agora cumpro: eis o ovo de ouro da minha galinha" - disse ele levantando aquele ovo dourado para que todos vissem.

Espanto de uns, desconfiança de muitos. Os problemas estariam resolvidos?

Mas a natureza não estava preocupada com aquilo, e a chuva não parou, sequer diminuiu por causa do ovo de ouro. Foi então que alguns começaram a perceber que o tal ovo estava ficando com uma cor diferente...

Isso mesmo. O nobre, no intuito de acalmar a tripulação e evitar o motim, trancou-se com a galinha em seus aposentos, tomou um ovo comum em suas mãos e o pintou de dourado. Mas a chuva mostrou a farsa.

O descontentamento foi geral. O clima dentro do navio ficou muito ruim, e o motim só não aconteceu porque os marujos tinham se apegado aquele navio, àquela vida, e aos colegas. O nobre isolou-se em seus aposentos, e saía de lá de tempos em tempos apenas para dar ordens, ocasiões em que fazia questão de usar um tapa-ouvidos para ignorar os avisos dos tripulantes e o barulho das ondas e ventos, que anunciavam novas e maiores tempestades.

Mas os marujos precisavam se manter firmes, mesmo que a viagem e as tempestades fossem fazendo com que cada um seguisse o seu caminho, como aconteceu a um dos primeiros tripulantes, que abandonou o navio ainda no início da viagem para seguir sua própria rota, e do qual eles hoje se lembram com um misto de inveja e admiração.

O marujo que relatou estes fatos deixou este manuscrito na última cidade em que aportaram, e disse ainda que espera não estar no navio para escrever os últimos capítulos desta história, mas ainda precisa continuar a acompanhar a viagem, e assim que tiver alguma novidade, manda para nós, slaves.

Ele diz ainda que, depois da farsa descoberta da galinha de ovos de ouro, o último acontecimento que chamou a atenção dos marinheiros foi o aparecimento de ratos num determinado local do navio. Se a máxima de que os ratos são os primeiros a abandonar um navio à beira do naufrágio, ainda há a esperança de que eles tenham tempo de reagir, e mudar suas vidas.

Aguardem os próximos capítulos....

Nenhum comentário: